Tenho sido surpreendido por muitas revelações. A pesquisa que tenho feito envolve sobretudo a ilha de S. Vicente, mas gostaria também de pesquisar sobre o cinema nos outros concelhos do país. Acho que esta é uma questão tão importante quanto a questão de preservação de edifícios históricos, também é um património, neste caso um património humano e imaterial, de valor extraordinário.
É pena que nem os institutos culturais nem as câmaras municipais têm interesse por esta área. Mas alguém tem de fazer este trabalho e acredito que eu e todos aqueles que têm curiosidade por esta área, por exemplo o senhor Rui Machado, Dany Mariano, que tem procurado restaurar alguns documentos, pessoas que têm guardado em suas casas e que vêem nelas valor, podem fazer alguma coisa.
- Além de existir salas de cinema em Cabo Verde, que neste momento estão todas encerradas mas que em décadas passadas projectaram filmes de vários países, pode-se dizer que existe um cinema cabo-verdiano?
Não acredito que o cinema cabo-verdiano tenha existido em algum momento. Olha, ainda hoje se diz que o continente africano não tem uma cinematografia porque ainda há pouco material. Só recentemente, com a realização do Fespaco se passou a estimular a produção de um cinema de cunho africano. Mas é complicado definir um cinema africano porque a própria África é muito plural, o que dificulta as coisas. Algo parecido acontece em Cabo Verde: não temos produção suficiente para ter uma cinematografia cabo-verdiana.
Mas acredito (e esta é uma visão muito positivista das coisas) que faço parte de uma geração que pode vir a construir uma cinematografia cabo-verdiana. Outras pessoas tentaram fazer isso noutros momentos, mas por diversas razões desistiram. Essas pessoas, que participaram nos filmes dos anos 50 (pelo menos que eu tenho conhecimento), por exemplo António Ponchinha e Gabriel Borges, são hoje praticamente desconhecidas e não se tem acesso ao material que produziram e nem se sabe ao certo se este ainda existe.
- Por que terão desistido: limitações financeiras? Inexistência de políticas para o sector?
Foram várias as razões. Alguns desistiram devido a desmotivação. É aquela velha história: não faças nada porque em Cabo Verde a actividade artística não dá nada. Temos provas que apontam no sentido contrário, exemplos heróicos de pessoas que decidiram se assumir plenamente como músicos, bailarinos, actores. Falta isso em relação ao cinema, neste momento. Eu me identifico como cineasta com toda a afirmação e atitude e justifico porquê.
- Assim, aproveitando a deixa, pergunto-lhe: porquê se identifica como cineasta?
Por isso, nós que somos cabo-verdianos temos que assumir esta área e continuar a trabalhar, com teimosia como é o caso de Mário Benvindo, Paulo Cabral, Júlio Silvão, Boss, Jean Gomes, que fazem os seus documentários aqui no território nacional, Ana Lisboa, Guenny Pires, que estão fora do país mas continuam a fazer um trabalho focado no país. Não são os filmes como Fintar o Destino, O Testamento do Senhor Napumoceno ou outros filmes feitos por estrangeiros que vão contribuir para o aparecimento de uma cinematografia cabo-verdiana.
- Afirmou num artigo que foi recentemente publicado no Suplemento Kriolidadi, do jornal A Semana, que, e passo a citar, “se o filme da história da exibição em salas é do género cómico-dramático com um final estupidamente trágico, a história da produção faz o caminho exactamente inverso”. O que quis dizer com isso?
Eu tenho como grande referência o Henrique Pereira porque ele foi um grande apaixonado por cinema, um sonhador, que pôs o seu filme às costas para poder mostrá-lo a todos os seus conterrâneos. Mas a história dele acabou em tragédia: o seu material foi confiscado e ele desiludiu-se e desanimou, pois não era fácil (e continua a não ser) a montagem de uma grande produção para fazer um filme aqui em Cabo Verde. Sabe, aquela casa velha que fica bem ao lado da Mediateca, que está bastante degradada, serviu de cenário de alguns filmes. O Clube de Ténis de São Vicente era o centro de produção. Mas, todos esses esforços foram apunhalados. E nem é preciso ir tão longe para ver que as condições não mudaram muito desde então. Vejamos o caso de Leão Lopes, que fez o filme “Ilhéu de Contenda com vontade e esforço extraordinários e que acabou por ter uma relação estranha com o próprio cabo-verdiano. Não foi dada autorização para o filme ser exibido nas salas de cinema de Cabo Verde por questões de produção, e consequentemente a maioria dos cabo-verdianos não viu o filme.
Entretanto, posso dizer que agora estamos a viver um bom momento. Embora sem salas de cinema, as pessoas estão a procurar espaços alternativos para exibir os filmes. Temos neste momento casos de várias pessoas que estão a filmar, a realizar, a fazer cinema, mesmo com orçamentos muito apertados. E o seu trabalho está a ser reconhecido. Por exemplo, o documentário de Júlio Silvão “Batuque: a alma de um povo” é espectacular tanto como filme como material antropológico. O filme de Mário Benvindo - Rua Banana - tem um início que é o melhor que já vi em filmes feitos por cabo-verdianos, espectacular. “O Percurso do Outro”, de Guenny Pires é tecnicamente muito bem trabalhado, o que indicia que ele está muito bem preparado e tem grande maturidade. Eu estou a fazer um trabalho experimental, uma espécie de versos em forma de cinema, com a ideia de fazer uma homenagem a todos os meus ídolos como os mestres Charlie Chaplin, Brad Cash, Glauber Rocha, Alexander Sokurov, Sergei Einsensteins e Artazvad Pelechian.Curiosamente, apesar desta vaga de produção cabo-verdiana, não há uma aposta, não há uma política estatal para a área. A quem podemos recorrer para conseguir apoios e angariar recursos? O que temos feito é apoiar uns aos outros, funcionando como uma espécie de cooperativa. Ou seja, está no ar uma boa esperança e acredito que mais cedo ou mais tarde vai aparecer alguém que investirá no cinema, que dará um passo à frente e apostará no cinema feito por cabo-verdianos.
Se os empresários nacionais apostam em festivais de música, em que o seu nome aparece uma só vez, porque não apostam num filme ou documentário que vai ser projectado várias vezes e, logo, todas as vezes o seu nome vai aparecer? Mas o problema não é apenas falta de ajuda financeira, falta também apoio institucional do Ministério da Cultura. Não imagina as dores de cabeça que os cineastas cabo-verdianos sofrem quando saem para o exterior só pelo facto de não termos um instituto de cinema e de não sermos acompanhados por nenhum representante do Ministério da Cultura. Eu quero crer que isso é porque o MC não está a conseguir acompanhar a nossa dinâmica. Mas não é só isso, o MC precisa ser mais atencioso para com os artistas, nomeadamente os cineastas.
Muitas vezes, tratam-nos como párias, nem se dignam a responder sim ou não aos nossos projectos. Por exemplo, as mostras de cinema que temos organizado, em que mostramos o nosso trabalho. Não é como aqueles encontros de cinema que têm sido organizados em Cabo Verde, mas a partir do estrangeiro. Ou seja, nesses casos apenas damos casa pa boi. Há tempos, em conversa com a D. Maria Luísa, uma das proprietárias do Éden Park, que tudo fez para evitar o encerramento e a venda, já quase concretizada daquele espaço, perguntei-lhe: qual a solução para o cinema em Cabo Verde? Ela disse-me: a partir do momento que Cabo Verde tiver produção cinematográfica própria, passaremos a viver um momento inverso a este, em que todas as salas de cinema estão fechadas. Às vezes, encontro-me na rua com pessoas que se mostram indignadas com o facto de não estar a funcionar sequer uma sala de cinema.
- Qual a solução para este problema de falta de salas de cinema a funcionar?
Uma das alternativas é a criação de cine-clubes que, reunidos, podem no futuro, ser uma grande projecto. É um trabalho como o da formiga, leva tempo mas dá bons resultados. É pena que não tenhamos tido capacidade para dar conta do perigo que corria o Éden Park. No entanto, há que ressalvar que o Éden Park é um património desta cidade, nacional, mas também é um património de uma família. Ouvi dizer que o projecto que o futuro novo dono tem, que será uma espécie de centro comercial, inclui salas de cinema. Bem, espero que sim. Mas o problema não é só esse.
- É a história que se fez no Éden Park que está também em causa, não é?
Sim. Infelizmente, não vi a Câmara Municipal de São Vicente a fazer muitos esforços para impedir a venda nem o Ministério da Cultura e o governo nacional em geral a tomarem qualquer iniciativa para que se conservasse o Éden Park. A D. Maria Luísa aguentou o quanto pode essa situação de crise, que era bastante complicada. Ela é uma apaixonada pelo cinema, fala disso sempre com emoção e é com muita pena que está a desfazer-se do Éden Park, uma sala que ela ama. Em suma, creio que faltou um bocadinho de esforço também da nossa parte, nós os cidadãos e entidades públicas. Espero que a pessoa que vai comprar o Éden Park seja sensível à importância que o edifício tem para a história da cultura cabo-verdiana.
- Segundo sei, a Câmara de São Vicente projecta criar uma cinemateca, para tentar minimizar a perda do Éden Park. O que acha disso?
É uma boa ideia, mas uma cinemateca não vai nem pode substituir o Éden Park ou outras salas de cinema. A cinemateca é uma instituição cuja missão é cuidar da cinematografia de um país. Na minha opinião, está se a tratar do assunto com uma certa leviandade. Imagine, trouxeram a Fátima Antunes a S. Vicente para falar de cinemateca e a primeira questão que se discutiu é onde vai ser instalada a cinemateca. Porquê, se ainda nem temos um conteúdo para rechear essa futura cinemateca? Uma cinemateca é bem diferente de uma sala de cinema, pode funcionar em qualquer sala mas tem que ter produtos cinematográficos. Mas queria dizer uma coisa: as pessoas falam muito do Éden Park mas esquecem-se do Parque Miramar. Ninguém se lembra que foi comprado pela Igreja Universal do Reino de Deus, na altura não foi levado em conta o seu valor patrimonial. Depois a IURD mudou-se para um edifício construído de raiz e o Parque Miramar foi fechado e continua assim e em avançado estado de degradação. É uma imagem dolorosa.
- E a outra ideia de criar um museu do cinema? Neu Lopes escreveu recentemente no blog da sarron teatro que a D. Maria Luísa está disponível a ceder todo o material que tem.
- Em que deve apostar os cineastas cabo-verdianos: ficção ou documentário?
É indiferente. Ficção ou documentário, o que importa é que seja um projecto credível, que consegue convencer o mercado e as pessoas que podem financiar o mesmo. Quer seja documentário, ficção, animação, experimental, tudo é cinema. À partida, parece mais fácil fazer um documentário, pois basta ter uma camera, mesmo aquelas embutidas nas máquinas fotográficas, e ir fazendo o meu filme, e com qualidade.
- Você é o director do Oiá, ciclo de documentários anual. Mas, também, tens projectos pessoais de documentários. Pode nos dizer quais?
Quando eu decidi que queria ser cineasta e comecei a investir na minha formação, quis fazer tudo com muita pressa, esquecendo-me que tudo tem o seu ritmo. Tem feito pesquisa sobre cinema, tenho estado envolvido na organização de mostras de cinema, cineclubes, mas também tenho as minhas produções. O pessoal do cinema que me conhece, tanto nacional como internacional, me chama “Tambla Rabidante” porque tenho um projecto de um documentário intitulado “Rabidante”, que já deve estar cansado de estar na gaveta e amarelado. Mas, a verdade é que quero fazê-lo com calma e bem, pois é uma grande homenagem que quero fazer ao povo da ilha de Santiago, que é o meu povo, a ilha onde nasci e pela qual tenho um sentimento especial. Estou neste momento a criar estruturas e reunir meios para fazê-lo. Fora isso, estou a fazer os meus filmes poéticos, a série Poeira & Poesia. Deveria já estar a filmar Blimund, mas eu e o Boss tivemos alguns contratempos, por isso estamos atrasados.
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